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Os usos políticos do vaporwave como expressão dialética do détournement situacionista

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    Desnos
  • 27 de jun. de 2021
  • 18 min de leitura

Atualizado: 16 de out. de 2021

Cristiano José Steinmetz

Rafael Rodrigo Mueller

Talia Jeremias


A obra magna do francês Guy Debord (1931-1994), A sociedade do espetáculo, publicada inicialmente em 1967, expressa o espírito desviante dos situacionistas27 que buscavam, sobretudo, a superação da sociedade espetacular constituída sob o reino da autocracia do fetichismo da mercadoria. O desvio, compreendido também como o détournement situacionista, é aquele que expressa o movimento de subversão de uma realidade reificada e transformada em mentira (DEBORD, 2017, § 206, p. 157).

Nestes termos, o desejo situacionista de restituição de uma vida plenamente vivida se apresenta como a negação do modo de existência atual, portanto, não como um saudosismo romântico, mas como a negação da existência pautada na fantasmagoria do capitalismo.

Essa nostalgia de uma ilusão se expressa na contemporaneidade como sintoma de uma profunda alienação do presente, e é por essa característica do sujeito da atualidade que, de certa maneira, percebese que o mesmo fora forjado pelo desencantamento de um mundo espetacularizado. Assim, o sujeito da “sociedade do espetáculo” foi circunscrito em uma lógica onde o tempo não só deve ser otimizado em prol da plena concorrência e do rendimento, mas no qual o presente se constitui de forma tão opaca quanto sua própria existência - Debord (2017) trata dessa questão como tempo cíclico. Contudo, essa sociedade expõe o presente como um estado de monotonia interminável, no qual nem mesmo o futuro – que se expressa ciclicamente apenas como a continuidade do presente – permite encontrar o fundamento para a restituição plena de sua vida.

Porém, ainda é possível dizer que esta sociedade reconhece, em um passado nem tão distante, um período onde o futuro parecia ser reluzente. Contudo, como todos sabemos, este futuro não só foi removido do horizonte social da época, como também o presente, em seu aspecto cíclico, revelou-se ao sujeito que já incorporava, desde pelo menos o início do século XX, a ilusão do espetáculo enquanto seu modus operandi individual e social.

Em junho de 2019, o jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria cujo elemento analisado carrega em si um potencial teórico extenso e que possibilita uma ampla investigação em diversas frentes, tais como a política, a artística e a estética. A matéria, intitulada “O que é vaporwave, a estética criada na música eletrônica e apropriada pela nova direita” (2019), aborda de maneira breve e pontual como um movimento estético surgido na internet tem em si o potencial de projetar para o seu público um clima de nostalgia e saudosismo, assim como permitir a disseminação de determinada ideologia política por meio da incorporação desta em sua manifestação estética, com o objetivo de torná-la aprazível e amena aos olhos e ouvidos de sujeitos desavisados. O vaporwave apresenta-se, portanto, na matéria mencionada, como algo belo em seu exterior e potencialmente nocivo em seu núcleo.

Delineamos, a partir do que foi brevemente exposto até aqui, dois caminhos distintos para a condução de nossa argumentação: i) compreender como se dá um movimento de cooptação pelo capitalismo e em que se constitui o fundamento ideológico do capital no decurso do seu próprio aprofundamento histórico, sendo a cooptação, de um modo geral, um movimento basilar de expansão de seu próprio poder de alcance e; ii) elucidar em que consiste o conceito de desvio para os situacionistas, o que é o vaporwave e, portanto, como esse último veio a ser cooptado por uma ideologia antagônica, constituindo-se na contemporaneidade como um détournement às avessas


A ESPERANÇA E O FIM DA ESPERANÇA: O MAIO DE 1968 FRANCÊS COMO EXEMPLO DE COOPTAÇÃO PELO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO


O Maio de 1968 francês foi um período emblemático na luta de classes do Ocidente. O que houve naquele momento não foi somente uma manifestação estudantil, mas a ocupação em larga escala das ruas com práticas de guerrilha tanto pelos estudantes quanto por parte da classe trabalhadora que aderiu ao chamado dos estudantes. O que veio se delineando a partir dali foi um cenário de possível revolução que tomou conta do espírito do Ocidente – incluindo o Brasil, que vivenciava o período mais autoritário da ditadura militar – e que continua reverberando pela juventude revolucionária até os dias atuais28.

Quando tratamos de uma possível falta de unidade no Maio de 1968, não estamos somente abordando os possíveis lapsos das pautas reivindicatórias pelos militantes, estamos apontando, sobretudo, para um movimento contrarrevolucionário e para a leitura burguesa que se fez do movimento. O Maio de 1968 – inspirado, em certa medida, pelo movimento situacionista e pelo manifesto “A miséria do meio estudantil” (1966), escrito por Mustapha Khayati e editado por Guy Debord, assim como pela própria obra de Debord intitulada A sociedade do espetáculo (1967) – projetou um horizonte revolucionário sobre o espírito francês, mas que se diluiu após a política de conversão do elemento crítico do movimento pelo presidente conservador Charles de Gaulle.

A cooptação e conversão da crítica ao capitalismo pelas próprias políticas democrático-burguesas não aponta para uma preocupação do modus operandi em prol da resolução de determinados problemas sociais – até porque, no capitalismo, uma série de problemas históricos se aprofundam, uma vez que convém à ordem econômica dominante capitalizar as próprias contradições internas da sociedade –, mas sim para a condição de degradação da alteridade em um sistema que privilegia o igual, isto é, o elemento alienado e submetido à ordem do fetichismo da mercadoria.

A principal crítica que se desdobra na obra de Boltanski e Chiapello (2009) intitulada “O novo espírito do capitalismo” é a de que as transformações ideológicas do capitalismo, ainda no século XX, detinham não somente o poder de enfraquecer a crítica negativa, como também o poder de mover do âmbito externo em direção ao interno, ou seja, de levar para dentro do capital aquilo que havia surgido inicialmente como uma antítese do mesmo, como o Maio de 1968 francês, por exemplo.

Os delineamentos de Boltanski e Chiapello (2009) em torno do espírito do capitalismo29 evidenciam de forma processual o movimento de transformação ideológica do capitalismo a partir do fim do século XIX e ao longo do século XX. Assim, os autores identificam três “espíritos” do capitalismo, que apresentaremos brevemente a fim de desenvolver nosso argumento.

O primeiro espírito do capitalismo surge em meados do fim do século XIX, e “[...] centra-se na pessoa do burguês empreendedor e nas descrições dos valores burgueses” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 49). Este espírito projetou sobre a própria visão de mundo ocidental a ideia de emancipação por meio do trabalho assalariado. Entretanto, as condições propostas pelo cenário que se desdobrava formavam um sujeito que se

[...] associava a disposições econômicas inovadoras (avareza ou parcimônia, espírito poupador, tendência a racionalizar a vida cotidiana em todos os seus aspectos, desenvolvimento de habilidades contábeis, de cálculo e previsão) posicionamentos domésticos tradicionais: importância atribuída à família, à linhagem, ao patrimônio, à castidade das moças (para evitar casamentos desvantajosos e dilapidação do capital); caráter familiar ou patriarcal das relações mantidas com os empregados [...]. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 49).

O segundo espírito do capitalismo faz referência ao período que vai, aproximadamente, da década de 1930 à de 1960. Aqui, a figura se desenrola a partir do empresário individual burocratizado e vinculado à industrialização do século XX, que tem, sobretudo, o intuito de expandir o próprio volume de capital individual. Segundo os autores, é também neste período que se tornam excitantes aos

[...] jovens diplomados as oportunidades oferecidas pelas organizações, no sentido de atingir posições de poder a partir das quais se possa mudar o mundo e – no caso da maioria – de obter a libertação de necessidades e a realização de desejos graças à produção em massa e a seu corolário, o consumo de massa. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 50).

Este segundo espírito vincula-se diretamente ao exemplo do Maio de 1968 apresentado anteriormente, visto que, uma vez projetado esse horizonte iluminado aos jovens estudantes franceses, descortinava-se claramente diante da juventude a miragem das falsas promessas de um mundo cujo futuro mostrava estar pautado na alienação física e espiritual das condições de existência. Isto é, um futuro que revelava que as próprias condições de existência dos sujeitos estariam voltadas às demandas do sistema mercantil global, ou seja, onde até os desejos individuais seriam capitalizados e mercantilizados em massa. Nesse sentido, para Jappe (2018),

[...] o movimento mundial de 68 aparece sobretudo como uma modernização das estruturas arcaicas da época, principalmente no domínio dos “costumes” e da liberdade individual, novos elementos criados pela fase “fordista” da economia. (JAPPE, 2018, p. 42).

Assim, o ano de 1968 foi emblemático no sentido de um desfecho do segundo espírito do capitalismo, pois aqui já se formava o embrião daquilo que posteriormente seria compreendido como o terceiro espírito do capitalismo para Boltanski e Chiapello. Jappe (2018) conclui o argumento da seguinte maneira:

A síntese situacionista de uma “crítica artística” e de uma “crítica política” [...] revolucionária para a época, poderia ser considerada precursora do “capitalismo estético” de hoje ou do “terceiro espírito do capitalismo” (Boltanski/Chiapello), baseado na valorização da “criatividade” e da “autonomia” individual como em substituição às antigas hierarquias rígidas e piramidais. (JAPPE, 2018, p. 42).

Da mesma forma, Morin (2018) aponta que é possível compreender a crítica dos estudantes franceses como algo que ultrapassava a pauta das oportunidades de emprego (ou da falta dessas oportunidades), como algo que atacava a articulação entre o processo formativo universitário tradicional e a vida burguesa, radicalmente negada pelos estudantes. Sobre o movimento, Morin (2018) destaca que a principal pauta era

[...] a recusa da vida burguesa considerada como mesquinha, medíocre, reprimida, opressiva; sublinha não a busca de uma carreira, mas o desprezo pelas carreiras de quadros técnicos que os esperam; não acentua a sua vontade de se integrar o mais rápido possível na vida adulta, mas a contestação global de uma sociedade adulterada (MORIN, 2018, p. 33).

Assim, ao passo que se desdobrava um avanço técnico, tecnológico e científico no Ocidente, também se projetava um gradativo cenário de descontentamento em relação às promessas que não se cumpriam com o passar do tempo. Boltanski e Chiapello (2009) ainda afirmam que graças ao engenhoso dispositivo das “liberdades individuais”, os capitalistas mantinham o controle dos poderes materiais e ideológicos, ao passo que realizavam reformas burocráticas que por fim legitimavam, sob novas bases, os discursos dos poderesdominantes. Em outras palavras, ao mesmo tempo que o capitalismo tirava maior vantagem da grande oferta de mão de obra motivada por salários acrescidos, ele também se apropriava do descontentamento das massas para oferecer mercadorias que supostamente facilitariam e harmonizariam a vida, mas, sobretudo, para legitimar discursos de liberdade econômica e de meritocracia.

A abertura dos sujeitos em relação às promessas de mercado fez com que o terceiro espírito do capitalismo ainda esteja em um estado de constituição de um “espírito isomorfo”, ou seja, um espírito que busca se efetivar em um âmbito global de forma que pareça imprescindível para a existência humana (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

Neste terceiro espírito, além do desencanto em relação à falta de garantias conferidas, por exemplo, pelo diploma superior e pela ameaça à aposentadoria dos trabalhadores, os sujeitos se veem em condições de trabalho cada vez mais precarizadas e com um horizonte cada vez mais nebuloso devido ao aprofundamento da condição neoliberal ou, quiçá, ultraliberal. Portanto, o alcance das realizações individuais e coletivas projetadas pelo segundo espírito do capitalismo difundidas nas décadas de 1930 a 1960 foram escancaradas e desacreditadas. Neste sentido, o que a França de 1968 presenciou foi, sobretudo, o início de um limiar histórico onde a falsa totalidade de uma globalização em prol do “bem comum” constituiria a ilusão de um mundo unificado30.

Entretanto, faz-se ainda necessário expor o motivo de se analisar os “espíritos do capitalismo” em um ensaio que busca compreender a dialética do desvio tendo como objeto de análise o vaporwave. Afinal, em que termos as reivindicações revolucionárias do Maio de 1968, um novo espírito do capitalismo e a manifestação contemporânea do vaporwave dialogam? Para responder de forma inicial essa questão, nos aproximaremos do vaporwave a fim de expor como as condições que permitiram tal movimento estético emergir tomassem as proporções e as características que vêm tomando no Ocidente, sobretudo, diante do crescimento de determinada frente política de extrema direita.


UM CULTO AO PASSADO E O DÉTOURNEMENT SITUACIONISTA ÀS AVESSAS


Há uma consciência comum que reconhece que a nostalgia está relacionada aos sentimentos de desalento e saudade. Todavia, a mesma consciência desconhece, em larga medida, que a nostalgia também pode ocultar uma visão acrítica do conservadorismo, levando em consideração o caráter de saudosismo a-histórico que pode assumir. Já a melancolia, por sua vez, pode ser percebida em um amplo espectro de negatividade, mas também pode estar articulada à arte e à política ao estar vinculada à alguma cosmovisão totalizante. E aquilo que, em um primeiro momento, aparentava ter contrastes semelhantes, aos poucos revela suas complexas nuances.

A dialética nestas questões expõe sua complexidade em diversos níveis, visto que podemos apontar para uma concepção desenvolvimento histórico, ou seja, da dialética entre passado e presente onde o hic et nunc expressa, na melhor das hipóteses, o esboço de um futuro pautado na esperança e na abertura para o novo e, em seu contraste, para a falta de perspectiva e para a incapacidade de retomar um elemento perdido no tempo. Diante disso, podemos ser assombrados pelos próprios objetos de estudos sobre os quais agora nos debruçamos.

O vaporwave31, objeto analisado neste texto, reforça os contrastes de ambos os polos mencionados anteriormente: por um lado, ele flerta32 com a estética de um passado que carrega em si a suposta promessa de um futuro iluminado – tal como no segundo espírito do capitalismo – e, por outro, revela a banalidade estética que acompanhou a degradação do presente que mal sustenta a luz que o auxilia no percurso dos seus próprios passos – como no final do segundo e início do terceiro espírito do capitalismo.

Ao mesmo tempo em que, aparentemente, o vaporwave surgiu somente como mais uma mercadoria no mundo do entretenimento de massa, ele também emergiu como a negação da estética vigente na própria indústria cultural, pois criava um elemento de caráter contestatório a partir da apropriação de conteúdos pré-existentes, negando a estrutura mercantil de criação, composição e duração amplamente difundidas pelo modo de reprodução capitalista.

Em outras palavras, o vaporwave projetava ao âmbito do comum uma estética nova a partir do desvio de artefatos banais e vulgares do cotidiano e, ao desviar elementos do passado no presente, o vaporwave confrontava o movimento de aceleração generalizado da vida ao produzir, por exemplo, músicas introspectivas e lentas com duração de 24 horas e loopings de colagens de fotografias e vídeos com ruídos visuais que remetessem, pela via da memória, algumas experiências da vida cotidiana, em larga medida suburbana, das últimas décadas do século XX.

Contudo, nos convém ressaltar o que temos por fundamento ao nos referir ao conceito de desvio. Um exemplo concreto de desvio que podemos indicar, para além do vaporwave, é tanto as obras cinematográficas de Guy Debord, com também A sociedade do espetáculo, visto que essas produções se constituem a partir de detournées. Isto é, para o autor, o desvio como elemento dialético é expresso como aquilo que é

[...] o contrário da citação, da autoridade teórica sempre falsificada pelo simples fato de se ter tornado citação; fragmento arrancado do seu contexto, do seu movimento, da sua época como referência global e da opção exata que representava dentro dessa referência, exatamente reconhecida ou falseada. O desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia. (DEBORD, 2017, § 208, p. 158).

Ou seja, o desvio ou détournement, é uma tática situacionista de remover algo de sua banalidade, em larga medida mercantil, para inseri-la novamente no cotidiano, porém de tal modo que, em seu desvelamento fetichista, tal objeto faça alusão ao seu próprio movimento histórico, expressando uma crítica onde antes havia somente o reflexo da ideologia dominante. Assim, cabe-nos afirmar que compreendemos o aspecto da anti-ideologia não como um elemento neutro em relação aos elementos ideológicos, mas como aquele que, antes de mais nada, expressa o movimento histórico-dialético de gênese e desenvolvimento de tal objeto.

Nestes termos, a subversão do desvio não nega a fonte de determinado objeto, mas a encaminha a um nível (da crítica) superior, ou seja, ao remeter-se ao seu antigo momento enquanto elemento ideológico, o objeto desviado volta a trazer consigo o seu movimento dialético, porém em um condição de existência desfetichizada.

Deste modo, ainda é possível compreender que na relação de construção de uma estética aberta e crítica como o vaporwave, a respectiva lógica da apropriação de elementos cotidianos perdidos no tempo e sua cooptação e ressignificação enquanto um gesto político expõe, de certa maneira, o uso do détournement situacionista como um meio de confronto à ideologia capitalista mantida sob o signo da produção uniformizada de entretenimento às massas.

É o gesto político de “criar situações” que deu o nome ao coletivo de revolucionários franceses que dedicaram seus esforços na criação de proposições que almejavam a construção de uma nova sociedade, livre do espetáculo: a Internacional Situacionista (IS). Segundo Ferrer (2017), “o situacionismo seria, em seu centro de gravidade político, a ambição de que a vida cotidiana se convertesse num subproduto da arte, num meio para dar forma artística à existência” (FERRER, 2017, p. 22).

O détournement situacionista poderia ser compreendido, em uma tradução livre, como desvio. Desvio no sentido de ser um jogo político que objetiva a reconstrução de elementos no presente por meio da subversão de elementos do passado. Isto é, a partir de uma situação projetada ao âmbito do público, os indivíduos confrontam a normatividade estética e ideológica que permeia o espaço submetido às demandas do capitalismo. Portanto, a própria lógica do desvio se dá em um movimento dialético, ora dando forma artística à existência numa sociedade reificada, ora propondo a (re)apropriação de elementos perdidos no tempo a fim de estendê-los no presente sob o signo da ruptura e do confronto. détournement. No entanto, mais do que isso, o vaporwave evidenciase como um détournement às avessas, isto é, como um elemento “desviado” e introjetado novamente para dentro do preâmbulo sistêmico do qual se opôs originalmente.

Com tal característica, não só seria possível compreender o vaporwave como um movimento de caráter situacionista, isto é, de cunho social, aberto e livre da lógica hierárquica de concorrência capitalista, mas também como um movimento cujo desvio pressupõe objetivar a construção de uma situação que desloca a positividade do capitalismo para a margem da centralidade da vida humana.

Porém, se levarmos em consideração o antagonismo da perspectiva capitalista em relação à crítica originária do vaporwave33, perceberíamos – principalmente a partir do exemplo tratado a seguir –, a lógica de cooptação, de uma estética negativa para a centralidade do capitalismo, agindo no sentido de positivar o movimento como algo aberto e adaptável às demandas de concorrência entre as demais estéticas comuns à produção massificada de entretenimento. Portanto, esse détournement reverso realoca, ao horizonte capitalista, aquilo que havia surgido inicialmente como uma negação do mesmo. Deste modo, temos a recusa da negação da crítica, isto é, uma re-cooptação da estética que, ao voltar para a centralidade capitalista, legitima o esvaziamento da crítica negativa ao passo que é uniformizada, categorizada e comercializada assim como qualquer outro produto.

Mesmo que o vaporwave não pretenda se constituir enquanto um movimento político de vanguarda, existe, na centralidade do mesmo, uma crítica à melancolia do segundo espírito do capitalismo que lhe fornece um aspecto de oposição para com a lógica mercantil. Desse modo, é no bojo das concepções pós-modernas de mundo que o movimento foi cooptado e esvaziado de qualquer sentido histórico minimamente crítico, ao passo que volta a reafirmar a ideologia dominante sob novas bases. Assim, o vaporwave cooptado por uma cultura pop contemporânea expressa no presente o sentimento de um passado jamais vivenciado, produzindo, portanto, um “[...] fenômeno complexo que imbrica tanto a dimensão intima quanto a social da memória afetiva como uma imagem fraturada presa em partes perdidas ou reduzidas de espaço” (GLITSOS, 2017, p. 110, tradução nossa).

Em sua dialética não binária, o vaporwave, num primeiro momento, se estabelece enquanto um movimento artístico que procura retomar e enaltecer, principalmente, elementos estéticos de produtos veiculados às massas do primeiro e segundo espírito do capitalismo – a fim de trazer consigo a intenção inicial de compor com o público uma atmosfera de melancolia e nostalgia em relação à “perda da memória” na contemporaneidade. Já, em um segundo momento, o vaporwave se apresenta como um exercício de arqueologia de produtos de épocas passadas que tem como perspectiva última a reafirmação de determinada ideologia por meio da elaboração de uma composição estética que justifique um viés de manutenção ideológica, isto é, que elenca ao presente as antigas promessas do capitalismo – com base no exemplo a seguir esse segundo momento se dá, em larga medida, de forma circunscrita ao conservadorismo e, de certa maneira, ao germe do segundo espírito do capitalismo visto na primeira parte do presente ensaio.

Nos termos expostos até aqui, torna-se inegável compreender que os motivos de explorar os elementos estéticos de um passado desviando-os ao presente, acaba por repercutir na forma como nos relacionamos para com o tempo no qual nos situamos. Cabe-nos agora identificar, de forma mais pontual, o tópico dos usos políticos desta estética no âmbito das questões propriamente políticas.

É com a frase “a tradição não é o culto às cinzas, mas a preservação do fogo” que Maurício Meireles (2019) abre uma matéria da Folha de São Paulo intitulada como “O que é vaporwave, a estética criada na música eletrônica e apropriada pela nova direita”. Não bastasse a inclinação à discussão de teor político-ideológico, a matéria também se desdobra entre a exposição dos valores estéticos promovidos pelo vaporwave e entre o desvelamento sutil da cosmovisão que envolve, de certo modo, o segundo espírito do capitalismo que é incorporado ao vaporwave sob o véu da nostalgia.

Na matéria da Folha de São Paulo de Maurício Meireles percebemos que não só a estética do movimento vem sendo cooptada massivamente por amplos setores da extrema direita mundial, como também vem compondo uma nova ressignificação ideológica de seu conteúdo até então veiculado pelo vaporwave de forma crítica. Assim, expõe-se que esses grupos vêm se apropriando do vaporwave no sentido de legitimar esteticamente políticas e pautas conservadoras por meio de um “détournement às avessas”, que vai desde a completa desconsideração do elemento histórico-cultural ocidental do póssegunda guerra até a reafirmação do fascismo. Segundo Meireles (2019), ainda há aqueles que denominam o movimento – na atual conjuntura política ultraliberal – como fashwave, a partir da junção das palavras “fascist” e “vaporwave”.

Esse détournement reverso que expusemos anteriormente tem como centro a necessidade de reafirmação ideológica de uma cosmovisão de extrema direita que se apresenta fenomenicamente de forma aprazível e até mesmo encantadora no sentido de fazer uso da esperança redentora projetada outrora por certo “espírito do capitalismo”.

No que tange à conjuntura política de extrema direita em nosso continente, temos, ao que nos concerne, dois exemplos protofascistas de figuras políticas ocupando os cargos de presidência no Brasil e nos Estados Unidos. Nos convém ressaltar que mesmo havendo diferenças culturais, políticas e econômicas claras entre a figura de Jair Bolsonaro e de Donald Trump, percebe-se, sem esforço algum, que ambos representam politicamente em termos de nação, figuras q u e expressam símbolos protofascistas alimentados pelo fashwave. Isto é, ambas figuras apresentam discursos de enaltecimento de um suposto passado promissor, íntegro e salvo do “espírito degenerado” do socialismo. Percebe-se também que os discursos promovidos durante suas respectivas campanhas presidenciais frisavam valores nacionalistas, burgueses, racistas, cristãos, heteronormativos, machistas e, sobretudo, anticomunistas.

Os slogans “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e “Make America great again” se constituem enquanto conservadores por si só e mereceriam, por sua vez, uma análise mais aprofundada que está para além do escopo deste ensaio. Contudo, no caso brasileiro, seja por meio de discursos saudosistas da ditadura militar brasileira (1964 – 1985) ou pela defesa absoluta da ordem imperialista burguesa, a política de Jair Bolsonaro vê – naquilo que compreendemos anteriormente como o período do segundo espírito do capitalismo – uma época cujos valores morais devem ser retomados. O mesmo conservadorismo se escancara na política de Donald Trump, cujo slogan pretende “fazer a América grande novamente”, aludindo à campanha presidencial estadunidense de Ronald Reagan na década de 1980 – período político-econômico demarcado pela escalada da racionalidade neoliberal no país.

A retomada de valores conservadores em seus discursos políticos não aponta somente para o desencantamento em relação ao presente alienado, tampouco para o avanço político de certos setores progressistas nos últimos anos, mas sim e, sobretudo, para o sintoma de um sistema capitalista que é incapaz de fazer reluzir as esperanças de um passado promissor projetado às massas, agindo, portanto, no presente por meio de falsas promessas alimentadas por um estética conivente. Assim, esse sintoma expressa, de certo modo, uma nostalgia comum e acrítica que procura recompor no imaginário popular a lembrança de uma época quando éramos supostamente mais felizes, quando as promessas do segundo espírito do capitalismo ainda continham um frescor de esperança e novidade.

Como vimos, os “espíritos do capitalismo” para Boltanski e Chiapello (2009) demarcam não somente uma visão de mundo circunscrita a uma expectativa de democracia e liberdade sob o advento do capitalismo, mas também a uma visão de mundo antidemocrática, autoritária e com tendências fascistas. Obviamente, não propomos apresentar o fashwave como uma “vanguarda conservadora da arte contemporânea”, mas o vaporwave em sua totalidade como um fenômeno que surge na internet e que vem ganhando reconhecimento e validade a partir de determinados usos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Ocultado em um labirinto de algoritmos de programação digital, o vaporwave se apresenta na internet enquanto uma dimensão marginal da expressão e da capacidade humana de retomar fragmentos do passado, associá-los sob novas perspectivas e reapropriá-los em uma conjuntura que, de maneira geral, tende a esvaziá-lo de sentido, projetando-o novamente à manutenção ideológica de uma sociedade extremamente alienada e assombrada pela ordem mercantil hegemônica.

Ao mesmo tempo que o vaporwave vem sendo cooptado pelos setores conservadores da sociedade burguesa, ele também aponta em sua contradição dialética, para o motivo que o fez emergir em primeiro lugar: para a crítica ao presente destituído de memória histórica que é, convenientemente, conservado pela lógica fetichista do capitalismo.

Como uma estética aberta a diferentes usos, o vaporwave ainda contém em sua centralidade essas contradições inerentes; entretanto, o que expusemos foi o desvio e a conversão da estética em seu própria dialética que, ou promove uma experiência artística de elevação da cotidianidade do sujeito por meio de uma experiência de sensibilidade em relação à memória histórica, ou de forma a representar alegoricamente algo que, pela via do conservadorismo, teria mais valor em um passado supostamente mais integro ou menos “degenerado”.

O vaporwave não é apenas um movimento estético que tem em si somente a intenção de um devaneio no imaginário popular através de elementos do passado, mas é o fruto de uma sociedade nostálgica e profundamente melancólica que busca no passado a intenção de retomar as promessas perdidas no tempo. O vaporwave, como o sintoma de um tempo, compreende o sujeito contemporâneo como alguém que, inserido no tempo cíclico da mercadoria, perdeu a capacidade de controle de sua própria existência enquanto ser histórico.


REFERÊNCIAS


BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. Tradução de: Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 701 p.


CAMPO, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Mário M.. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016. 352 p. Coleção Baderna.


CECHINEL, André; MUELLER, Rafael Rodrigo (Orgs). Formação humana na sociedade do espetáculo. Chapecó, SC: Argos; Criciúma, SC: Ediunesc, 2019.


DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: 50 anos depois, mais atual que nunca. 2 ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017. 264 p.


FERRER, Christian. Prólogo: o mundo. In: _______. 2. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017. p. 7 – 29.


GLITSOS, Laura. Vaporwave, or music optimised for abandoned malls. 2017. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/ journals/popular-music/article/vaporwave-or-music-optimised-for abandonedmalls/69219E5A39FAA81223864853F8912910. Acesso em: 06 out. 2018.


JAPPE, Anselm. A sociedade do espetáculo, cinquenta anos depois. In: CECHINEL, André; MUELLER, Rafael Rodrigo (Orgs). Formação humana na sociedade do espetáculo. Chapecó, SC: Argos; Criciúma, SC: Ediunesc, 2019. p. 33 – 44.


LEFORT, Claude; CASTORIADIS, Cornelius; MORIN, Edgar. Maio de 68: a brecha. São Paulo: Autonomia Literária, 2018. 288 p.


MEIRELES, Maurício. O que é vaporwave, a estética criada na música eletrônica e apropriada pela nova direita. 2019. Disponível em: https:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/06/o-que-e-vaporwave-a-esteticacriada-na-musica-eletronica-e-apropriada-pela-nova-direita.shtml>. Acesso em: 22 jun. 2019.


MORIN, Edgar. A comuna estudantil. In: LEFORT, Claude; CASTORIADIS, Cornelius; MORIN, Edgar (orgs.). Maio de 68: a brecha. São Paulo: Autonomia Literária, 2018. p. 32 – 56.


WHELAN, Andrew; NOWAK, Raphaël. “Vaporwave Is (Not) a Critique of Capitalism”: genre work in an online music scene. Genre Work in An Online Music Scene. 2018. Disponível em: https://www.degruyter.com/view/journals/ culture/2/1/article-p451.xml. Acesso em: 21 fev. 2019.




 
 
 

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